terça-feira, 12 de setembro de 2017

Sobre o amor: conto 4 # Impressões de São Luís



Desde que me entendo por gente, minha mãe me contava saudosamente as histórias de sua terra natal. Cresci ouvindo sobre a temível carruagem de Anna Jansen, sei o quanto o ludovicense estima a vinagreira, a farinha d’água, a pimentinha de cheiro e o guaraná jesus.
Minha mãe não deixou passar em branco sobre o quanto o ludovicense é hospitaleiro e apaixonado por sua terra. Desejei ver de perto desde garoto os casarões antigos e todas aquelas histórias que ela me contava entusiasmadamente antes de dormir. Hoje, quase vinte anos depois, esse momento finalmente chegou.
Piso em solo maranhense e já sinto um sorriso percorrer meu rosto. Minhas mãos agarram firmemente a mala quando esta passa por mim na esteira repleta de bagagens de outros passageiros.
No portão de desembarque uma surpresa: o tio Zequinha me espera. Aperto os olhos para confirmar a figura que vejo. Apesar de mais rechonchudo e careca que na fotografia que mamãe me deu, o nariz pontudo é a mesmo.
Ele ainda não me viu. Com uma mão, segura uma placa improvisada escrita com meu nome, e com a outra, enxuga um suor que percorre sua tez. São Luís é uma cidade quente.
Ando em sua direção. Ele é menor do que eu esperava. Talvez tenha 1,65 metro, mas sua postura confiante é de um gigante. Paro em sua frente, e enquanto apoio a mala no chão, pergunto: - tio Zequinha?
Como resposta, ele arregala os olhos castanhos. Então como se a ficha caísse, ele exclama chamando a atenção de quase todos presentes naquela sala - Joaquim!
Sinto palmadas calorosas nas minhas costas, e ele diz: – como vai rapaz? Tua mãe me fez acordar com as galinhas para vir te buscar. Ela telefonou ontem me avisando que você chegaria agora em São Luís para nos fazer uma visita!
Ele me solta. Deixo um ar escapar dos meus lábios.
- como foi de viagem?
- foi tranquila. Não via a hora de chegar!
- ótimo, ótimo! – diz ele, pegando minha mala e já abre prontamente caminho pela multidão. Passamos por diversas famílias que respectivamente se cumprimentam. Algumas se despedem, outras se recepcionam. A habilidade dele de passar por todas elas, me impressiona.
Ao sair do aeroporto, minha expectativa sobre a cidade volta a permear minha mente. Até o momento em que o tio liga o som embutido no carro, deixando Bob Marley eternizar esse momento com o tão conhecido “three little birds”, ao mesmo tempo em que ele começa a me entrevistar: - o que o traz aqui, jovem? Férias?
Sorrio amarelo. – na verdade, eu fui contratado por uma revista em São Paulo para fotografar as belezas naturais brasileiras. Escolhi São Luís por sua história...
- Ah, então você é um artista! – diz ele orgulhoso, apoiando o cotovelo na janela do carro de maneira relaxada – é como diz o ditado: “filho de peixe peixinho é”. Pelo que tua mãe me contou, você realmente puxou a nossa família!
Ajusto-me no banco sem entender muito bem o que ele queria dizer. Ser fotógrafo é uma profissão comum, não?
A música muda. Estamos ouvindo agora “melô da Poliana”.
- por que você escolheu São Luís?
Reflito um pouco sobre a pergunta. Quando respondo, deixo um tom respeitoso sair na minha voz: - escolhi vir para São Luís por que ela foi reconhecida pela UNESCO com o tombamento da cidade como Patrimônio da Humanidade.
Ele me olha de uma maneira que me faz revelar-lhe um segredo.  - Confesso também que queria vir por causa de mamãe. Apesar de morar em outro estado ela adora esse lugar. Eu sempre quis conferir tudo o que ela me falou: os casarões antigos, a gastronomia, as praias, a história...
Ele sorri.
- mas tio, me responda uma pergunta... Aqui é norte ou nordeste?
- estamos no final do nordeste. Próximo do norte (Pará), e isso traz a nossa cidade características únicas. Você vai ver! – promete, ele.
Assinto, ansioso. Mal posso esperar para passear pelas ruas ludovicense.
Então, o carro para. Minhas mãos suam. Algo me diz que o espetáculo acaba de começar.

*       *      *       *

Ainda é manhã. Estou no bairro histórico acompanhado pelo tio Zequinha. Em uma mão está o meu guia turístico, na outra, minha câmera fotográfica. No rosto mantenho olhos atentos e um sorriso besta. E muita disposição nas pernas.
Deixamos o carro na praça Deodoro e seguimos pelos paralelepípedos da rua do Sol. Meio ao caminho, tio Zequinha esboça um sorriso, como se lembrasse de uma piada particular.
- o que foi, tio? – pergunto, curioso
- você sabia que certa vez, enquanto eu andava com seu avô por essa rua ele começou a questionar a largura dos andarilhos? Ele dizia, aborrecido “Eu não sei o que se passava na mente daquelas pessoas! Eu não consigo entender que planejamento foi esse de rua! Olha só, é tudo tão estreito! Mal dá para andar com tantos automóveis circulando...” - ele sorri com a lembrança, antes de prosseguir - então, precisei pacientemente explica-lo que as ruas são estreitas para nós por que naquela época as pessoas usavam tabocas, e depois os palanquins... Não automóveis!
- o que ele disse com sua explicação?
- me chamou de filho da mãe!
Gargalhamos.
Enquanto andamos, deleito-me com a beleza dos azulejos. Registro na minha câmera modelos portugueses, franceses e holandeses. No meio do caminho, deparo-me com as pedras de cantaria portuguesas nas calçadas, o que deixa tudo mais encantador ainda. Finalmente chegamos na nossa primeira parada.
O sobrado é hipnotizante.
- Museu Histórico e Artístico do Maranhão – anuncia, tio Zequinha. Sinto minha boca ficar levemente entreaberta à medida que damos os primeiros passos em direção ao seu interior. – meu museu favorito – completa, ele.
Uma guia se apresenta e nos leva a um passeio de volta ao passado. Descubro nos cômodos como a elite maranhense vivia no século XIX.
- esse casarão foi construído em 1836 e foi morada de do intelectual maranhense Joaquim Gomes de Souza – diz ela, orgulhosa – e, a tradição conta que Arthur de Aluísio de Azevedo, quando jovens teriam usado o teatro da casa para ensaios.
- interessantíssimo – sussurro quando vejo a sala em anexo. “teatro Apolônia Pinto”. - Incrível! Quem diria... Ter um teatro em casa!
Seguimos nosso passeio. Repentinamente, sinto tio Zequinha praticamente me puxar pelo colarinho de tanta empolgação – olha isso, Joaquim!
- o que foi, tio?
- Nosso Teatro! Esse é o Teatro Arthur Azevedo!
- o sr. conhece a história? – pergunto encantado com a fachada. O guia diz que ele tem um estilo neoclássico.
- mas é lógico! Esse teatro foi inaugurado em 1817 com o espetáculo de uma companhia trazida especialmente de Portugal. Mas foi chamado oficialmente de Arthur Azevedo só no século XX, para homenagear o ilustre teatrólogo maranhense. Em 1991 passou por uma reforma deixando-o no seu aspecto original, tornando-o um dos teatros mais belos do país.
- ele comporta quantas pessoas? – pergunto, enquanto tiro algumas fotos automaticamente.
- tem capacidade para 750 pessoas...
Deixo escapar um silvo. – realmente é uma beleza!
Quando tenho fotos o suficiente, seguimos mais um pouco e alcançamos uma praça.
- essa aqui é a Praça João Lisboa. Ouvi dizer que foi aqui que aconteceu um dos mais importantes fatos históricos maranhenses: a batalha entre holandeses e portugueses – diz ele coçando o queixo – se não me engano... foi no ano de 1643.
- o e nome da praça? De quem é? – pergunto encarando uma estátua de um homem sentado. Um pombo pousa em sua cabeça.
- Ah. João Lisboa... foi um dos mais corretos escritores da nossa língua...
Continuamos andando até alcançarmos um casarão com formato de igreja. Meu tio faz sinal respeitoso de cruz e anuncia - Chegamos na Igreja da Sé!
Meus olhos percorrem por todos os ângulos juntamente com minha câmera fotográfica. Registro a fachada com estilo neoclássico, os painéis de azulejos decorativos na sacristia, a nave central que é um lindíssimo exemplar da arte sacra brasileira, as pinturas parietais do forro. Quando me sento no banco de madeira, tio Zequinha me explica:
- essa catedral foi construída pelos portugueses no século XVII. Sua planta possui forma de cruz latina e em sua ornamentação predomina a cor dourada sobre um fundo azul. Durante a noite é iluminada, podendo ser vista de vários pontos da cidade.
Quando saímos de lá percebo que já é tarde. O sol está sobre nós. Minha barriga se manifesta.
- acho que chegou a hora de fazermos uma visitinha à gastronomia maranhense!
Tio Zequinha sorri.  - Eu também acho... venha comigo!
Descemos uma escadaria, passamos por uma rua... E mais outra e mais outra... sinto o suor percorrer o meu corpo.
- chegamos! – anuncia ele – aqui é a feira da Praia Grande.
- casa das Tulhas? – pergunto, conferindo mais uma vez no guia
Ele assente.
Vejo exposto em diversidade, cores, cheiros e texturas os temperos usados pelos maranhenses em sua culinária, camarões secos, castanhas, juçara, tiquira e fico extasiado com essas misturas. Meu estômago se manifesta.
Piedosamente tio Zequinha se rende em um restaurante.
Nos sentamos. Ele me apresenta a uma senhora baixinha de cabelos cacheados. Ela tem a cor que me lembra café. Seu sorriso me faz esquecer momentaneamente a falta que uma comida me faz.
- Zefa – chama, tio Zequinha com a mesma animação de sempre – esse aqui é o meu sobrinho. Joaquim! – anuncia ele.
- Ah... ele que o filho de Simone? – pergunta ela mexendo uma panela. O aroma lembra feijão. Minha boca se encharca de água.
- não, não... o filho da Simone é o Thiago. Esse aqui é o filho de Rosa.
- prazer! – diz ela estendendo a mão, deixando à mostra seu vestido com estampa floral.
- prazer! – repito o gesto e sinto suas mãos ásperas. Trabalhadoras.
- então... o que vocês vão querer?
- o de sempre! – solicita tio Zequinha confiante
Ela arqueia a sobrancelha, mas obedece. Quando volta, o aroma de mar me cerca. Uma sensação de nostalgia me agarra. É o mesmo cheiro dos pratos que mamãe preparava quando eu era criança.
- aqui está! – diz ela com sua simplicidade, depositando sobre a mesa o que julgo ser cuxá, arroz branco e torta de camarão.
Depois que registro em fotografias os pratos, sem cerimonia alguma eu provo cada item. Tio Zequinha pela primeira vez está quieto ao meu lado. Isto por que sua boca está ocupada com a torta de camarão.
- Agora eu entendo... – sussurro quando termino a refeição
- entendes o que?
- o porquê depois de conhecer esse lugar é tão difícil ir embora...
Tio Zequinha sorri.
- é verdade. São Luís estende os braços para quem a recebe. Quando você a abraça, ela deposita todo o seu amor. Se você permitir, jovem, em pouco tempo ela vai te revelar coisas inimagináveis. Sua brisa é coberta de cheiros, sons, cores e sabores.

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Abraço, 

Jeiane Costa.
E-mail: jeianecosta.novel@outlook.com

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