quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Sobre o amor: conto 3 # A história de Genevìeve




É madrugada de inverno. Do lado de fora é possível ver os pequenos flocos de neve caindo do céu gélido de novembro. O vento impiedoso por sua vez quebra o silêncio que transita entre os cômodos de uma pequena pensão na cidade de Èze, deixando a noite solitária.

Repentinamente ouve-se o som de passos cansados arrastarem-se pelo corredor até alcançar às escadas. Indiferente a isto, meio a escuridão, um gato cinza pula de sua caixa para encontrar algum objeto inanimado que atraíra sua atenção. O relógio por sua vez, mantém o seu ritmo sempre pontual. É pouco mais das 03:00 quando Geneviève alcança o pequeno fogão de sua cozinha.

Vê-se então uma tremeluzente luz de lamparina alcançar-lhe. Geneviève timidamente libera seu sorriso, demonstrando alguns dentes gastos que ainda possuí. Suas rugas demarcadas pelo tempo e cabelos grisalhos marcam muitas lembranças: algumas tristes, outras felizes. E ela sabe que o momento para revelar alguns deles finalmente chegara.

- estou atrasada? – pergunta Sophye em perfeito francês correspondendo ao simpático sorriso de Geneviève que à sua maneira ilumina o ambiente. Ela tem metade da idade de sua entrevistada, no entanto, o seu trabalho como jornalista rendeu-lhe tantas histórias fascinantes – como ela mesma diz - ao ponto de transforma-la em uma pessoa mais humana.

Para Sophye, cada ser humano é único. E isso o transforma em joias raras espalhadas ao mar. Ela busca em seu trabalho recolher essas preciosidades e cataloga-las como presente ao mundo.

- Non. – responde ela, segurando uma antiga chaleira de porcelana – o chá está quase pronto. Pode se sentar
Como resposta, Sophye gentilmente apoia a lamparina sobre a mesa e após sentar-se acomoda seu velho amigo gravador. Geneviève serve-lhe uma xícara de chá.
- merci. Obrigada.

Ela assente acomodando-se na outra cadeira de modo que ficam de frente uma para outra. Um alheio visitante diria que as duas se transformaram a partir desse momento em duas amigas confidentes.

- podemos começar? – pergunta Sophye, ajeitando-se na cadeira.
- oui. Sim. – responde Geneviève, bebericando o seu chá quente.
- muito bem, muito bem!- começa meio a um sorriso - O que é felicidade para você?

Geneviève fecha os olhos por um momento como se buscasse as palavras certas. Quando finalmente os abre, seus olhos azuis indicam que ela não está mais ali. Ela está mergulhada nas suas mais sutis lembranças.

*     *     *     *

- Felicidade é uma palavra muito complexa para se descrever... – diz ela, observando o gravador funcionar monotonamente à sua frente - E também muito subjetivo. O que pode ser motivo de felicidade para mim pode ser inútil para você. Acho que está mais relacionado para algo como sonho. Apesar de toda complexidade, eu posso dizer que sou feliz.

- você sempre foi feliz?

- Houve um período da minha vida que eu não sabia sorrir – continua, Geneviève tomando mais um gole de chá – foi no período da Grande Guerra. Eu morava em um orfanato e estava com dezenove anos quando a vila foi invadida por militantes russos. Foi uma cena muito triste. Todos os homens foram assassinados. As mulheres foram violentadas. E... Eu fui uma delas. Nós sobreviventes tivemos que superar nossas perdas. Tivemos que superar nossos medos e reaprender a sobreviver. Muitas jovens do orfanato que sofreu o abuso não suportou a dor e tirou a própria vida.

- você planejou tirar sua vida?

- Non. – replicou, ela com um olhar convicto de suas palavras - apesar de ser algo muito difícil, eu decidi seguir em frente. Mas a escolha que eu fiz não significa que foi fácil. Durante meses, eu não conseguia dormir. Tinha pesadelos. Eu ainda conseguia sentir o cheiro daqueles malditos e a lembrança dos seus rostos me atormentava.

Após mais um suave gole de chá, ela prosseguiu - Eu me sentia só. Vazia. Mesmo quando eu tocava no antigo piano - que havia no orfanato - as notas que antes me traziam jubilo, depois do incidente, me faziam se sentir triste. Diminuída. Eu não conseguia perdoar. Seguir a diante. Eu acredito que naquela época eu tive minha fé abalada... Certo dia, percebi que havia algo diferente em mim. Então... durante os próximos nove meses enquanto eu via minha barriga se desenvolver eu perguntava a Deus o porquê desse castigo.

- você pensou em abortar?

- Oui. sim. Mas certa tarde, me deparei com um cenário que jamais irei esquecer. Enquanto eu estendia colchas de cama recém-lavadas, o céu repentinamente ficou nublado. No entanto, ao invés da chuva cair, a direção do vento mudou e as nuvens foram transportadas para outro lugar. O céu brilhou novamente. Com isso, veio-me a certeza de que apesar de toda essa tormenta, em algum momento eu encontraria a paz.

- Qual foi o resultado de sua escolha?

- Bonheur. Felicidade. Saphira nasceu. Nos primeiros dias, eu não tinha coragem para ve-la. Mas após 
seus insistentes choros, finalmente tomei coragem para toca-la. Eu me surpreendi. Ela tinha os meus 
olhos azuis e o rostinho tão sereno que eu não tive palavras para descrever. Lembro-me que chorei 
naquele momento.
 
Empurrando inconscientemente a xícara de porcelana vazia para o centro da mesa, Geneviève prosseguiu: - Saphira me ensinou o significado da palavra amor. Ela devolveu minha alma que havia sido arrancada de mim nos meses antecedentes a sua chegada. Aos poucos, eu tive minha dor diminuída e minha alegria restituída. Nós brincávamos juntas no quintal do orfanato enquanto eu estendia as roupas no varal. Eu a ensinei a tocar piano. Colhíamos juntas flores na primavera, e certa ocasião, ela colocou em meus cabelos uma coroa de flores que ela mesma fizera. Ela me disse que eu era sua rainha. Eu chorei mais uma vez emocionada. Aquela foi a primeira vez que sorri depois de muito tempo.

- você ainda se sente só?

- Non. Hoje estou com cinquenta e nove anos e estou mais completa do que nunca! – disse, ela meio a um sorriso. É possível sentir gratidão no seu semblante – quando Saphira completou dezenove anos, insistiu vir para a capital para tornar-se pianista. Pegamos todas as nossas economias (que não era grande coisa) e chegamos aqui. Com muita dificuldade ela conseguiu tornar-se professora de piano em uma pequena escola. Lá ela conheceu o Professor Joshua, por quem se apaixonou.

- Joshua... ele é judeu?

- oui. sim. Sua família toda havia sido dizimada com a Grande Guerra. Mas assim como Saphira e eu, ele é um milagre. Estava vivo. Ele é uma pessoa maravilhosa! Muito inteligente.

- então Joshua tornou-se seu genro?

Geneviève sorri à pergunta. – mais que isso. Ele se tornou um segundo filho. Um presente que a vida me deu. Assim que ele se casou com Saphira, eu me preocupei durante várias semanas imaginando que seria deixada para trás. Mero engano! Joshua possuía algumas economias e abriu essa pensão colocando-me como regente desse lugar.

Sophye sorri encantada olhando em volta da cozinha com maior atenção. Ela não se sentia estar em uma simples cozinha de pensão. Era um lugar cercado de acolhedoras lembranças.

- A vida lhe reservou mais surpresas?

Geneviève assente puxando de dentro de seu vestido florido algo como um relicário - mes petits-enfants.
 Meus netos. Hoje tenho dois netos – a luz da lamparina tremeluz palidamente diante das duas miniaturas
de fotografias – esse aqui é o David – diz ela, apontando para a foto esquerda – e essa aqui é a Helena. 
São duas crianças adoráveis.
 
- Qual seria a sua mensagem para as pessoas que estão te ouvindo?
 
Geneviève fecha os olhos como se refletisse em suas palavras. Decidida, ela diz: - nós passamos por 
situações inexplicáveis em nossa vida, mas mesmo assim, devemos ter fé. Precisamos ter perseveran-
ça e confiar que algo de bom irá acontecer! Hoje eu acredito que tudo ocorre apenas com a 
permissão de Deus. – segurando o relicário com força, ela prossegue – sem duvida alguma, 
existem pessoas cruéis nesse mundo (eu própria fui vítima deles), mas o amor é mais poderoso. – 
Após um suspiro, ela prossegue - Elas são cruéis por que não experimentaram dessa riqueza. 
Basta se permitir beber de sua porção. Acredite em mim, é uma sensação mágica! O amor verda-
deiro é único. Cura tudo, vence tudo. Quem ama é feliz. Je suis heureux. Eu sou feliz... 
Graças ao amor.


Se você gostou dessa narrativa, deixe seu comentário abaixo e inscreva-se aqui, pois assim você receberá notificações de novas postagens. Até a proxima.
 Abraço,

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Romance expõe os desafios do escritor durante o processo de construção de um livro

“Escrever um livro é uma arte, uma poesia. É muito mais que jogar palavras ao papel aleatoriamente ou usar o a...